VIVA AO MESTRE BOZÓ PRETO
CAROLINA GUSMÃO MAGALHÃES, JEAN ADRIANO BARROS DA SILVA
“Salve, salve, salve
Salve esse jogo no ar
Salve esse pobre coitado que da capoeira veio a duvidar…” (Mestre Bozó Preto)
Ainda atordoado pela passagem para o plano espiritual de meu amigo Bozó Preto, gostaria de tecer algumas reflexões sobre os “encontros” que a vida me proporcionou com esta figura mítica da arte capoeira.
Desde que me entendo como capoeira, Mestre Bozó sempre foi uma figura emblemática aqui na cidade de Salvador, uma espécie de “mito real” das rodas nas lavagens, em particular, a festa de Yemanja, no Rio Vermelho, pois pela proximidade ao bairro do Nordeste de Amaralina, figurava com uma “extensão da casa do Mestre”, que tinha sua história atrelada a esta localidade. Assim, apesar da vinculação com a Luta Regional Baiana e toda tradição da herança de Bimba, o Mestre extrapolava a cena do “enquadramento rigoroso”, marca da grande maioria dos discípulos do Bimba, expressando uma forma de ser capoeira extremamente peculiar no cantar, jogar, e principalmente no tocar, pois nunca conheci tão exímio tocador de berimbau como ele.
Sempre irreverente, Mestre Bozó carregava o estereótipo do “bom baiano”, malandro, perigoso no jogo, mas sempre sabendo chegar e sair das situações mais inusitadas, fingindo cair, quando na verdade estava dando “rasteira” em muita gente. Me lembro quando certa feita em um evento na Boca do Rio, na antiga Moenda, ele pegou o microfone e afirmou…”Estou largando a capoeira”…… E todos no recinto ficaram estupefatos, pois se o grande Bozó Preto estava parando, como seria para nós?…. Ou seja, diante da magnitude cultural dele, quem de nós poderia continuar seguindo? rsrsrsrsrsrs….. Fato concreto, foi que dias mais tarde, na lavagem do Rio Vermelho, lá estava ele, com Ogum de frente e Exu abrindo caminhos….. Vixe…!!! Logo pensei, ele tentou sair da capoeira, mas a capoeira não saiu dele… Será que um dia conseguirei ter a honra da arte capoeira me querer de tal maneira?
Alguns anos mais tarde, o Mestre virou meu vizinho de bairro, pois foi residir na Boca do Rio, sendo inevitável deixar de encontrá-lo, com relativa freqüência, nas diversas rodas da circunvizinhança, fato que estreitou nossos laços capoeiristicos, e um tempo depois, por minha aproximação com Mestra Brisa, sua discípula, que hora passara a me acompanhar na capoeira e na vida, me oportunizou chamá-lo de AMIGO, sendo este outro fato curioso sobre Bozó, pois, na maioria do casos, os mestres enxergam seus discípulos como uma “propriedade particular”, sendo a migração para a tutela de outro mestre uma forma de “traição” de um laço imaginário de poder, mas esse era Bozó Preto, uma figura que não cabia nos moldes do “comum”.
Toda vez que o encontrava, me chamava para a charanga e pedia para acompanhá-lo tocando o “bode”, e quando precisava deixar o berimbau, me pedia para substituí-lo, fazendo questão de dizer…”Jean você não é Regional, mas toca direitinho”….. Eu ficava chateado com o “direitinho”….rsrsrsrsrsr…. Mas hoje reconheço a tamanha honraria do tal “direitinho”….. Gratidão!!!
Certa feita, em um workshop na Europa, após o termino da atividade, Bozó virou pra mim e perguntou…. O que achou?… Eu respondi…. Me senti em nossa terra, pois você reproduziu com fidelidade o Axé de lá…. Ele sorriu e disse… “Lá vem você com papo acadêmico, pois eu só fiz o que sempre faço”…. Na verdade Bozó tinha apresentado naquela ocasião uma das estratégias metodológicas mais fantásticas que eu já havia visto para ensinar a tocar berimbau, pois mesclava a sonoridade produzida pela boca, oralizando notas musicais que depois seriam reproduzidas tocando o berimbau, enfim, era a genialidade do saber popular ancestral expressa na simplicidade do complexo fazer da capoeira, sendo esta capaz de curvar o mais alto escalão da ciência pedagógica no planeta.
Entre o limiar do “mito” e do homem, mesmo cabendo todas as imperfeições da natureza humana, o legado de Bozó Preto “GRITA” aos quatro ventos a baianidade de nossa capoeira, com a técnica de uma “forma sem forma”, com uma belicosidade eficiente pelo improviso, e com a legitimidade de uma mestria construída no “fazer” de mãos calejadas por quem as “coloca no chão da roda” e pela empunhadura do instrumento de libertação, BERIMBAU.
Por fim, penso que aquele homem que estava sendo sepultado com todas as honrarias da capoeira foi o Sr. Carlos Alberto da Conceição, pois meu amigo, Mestre Bozó, segue vivo em mim e em todos que puderam ter a honra de compartilhar de seu saber. Assim, conclamo TODOS a juntos darmos um VIVA A BOZÓ PRETO!!!
AXÉ.: